Os rabiscos ganham complexidade conforme os
pequenos crescem e, ao mesmo tempo, impulsionam seu desenvolvimento cognitivo e
expressivo.
"Vou desenhar aqui, que tem espaço vazio."
"O cavalo ficou escondido debaixo disso tudo!" Joana, 3 anos
Reprodução/Agradecimento Creche Central da
Universidade de São Paulo (USP)
No início, o que se vê é um emaranhado de linhas,
traços leves, pontos e círculos, que, muitas vezes, se sobrepõem em várias
demãos. Poucos anos depois, já se verifica uma cena complexa, com edifícios e
figuras humanas detalhados. O desenho acompanha o desenvolvimento dos pequenos
como uma espécie de radiografia. Nele, vê-se como se relacionam com a realidade
e com os elementos de sua cultura e como traduzem essa percepção graficamente.
Toda criança desenha. Pode ser com lápis e papel ou com caco de tijolo na parede. Agir com um riscador sobre um suporte é algo que ela aprende por imitação - ao ver os adultos escrevendo ou os irmãos desenhando, por exemplo. "Com a exploração de movimentos em papéis variados, ela adquire coordenação para desenhar", explica Mirian Celeste Martins, especialista no ensino de arte e professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie. A primeira relação da meninada com o desenho se dá, de fato, pelo movimento: o prazer de produzir um traço sobre o papel que faz agir.
Os rabiscos realizados pelos menores, denominados garatujas, tiveram o sentido ampliado sob o olhar da pesquisadora norte-americana Rhoda Kellogg, que observou regularidades nessas produções abstratas (veja no topo da página o desenho de Joana, 3 anos, e sua explicação).Observando cerca de 300 mil produções, ela analisou principalmente a forma dos traçados (rabiscos básicos) e a maneira de ocupar o espaço do papel (modelos de implantação) até a entrada da criança no desenho figurativo, o que ocorre por volta dos 4 anos.
No período de produção de garatujas, ocorre uma importante exploração de suportes e instrumentos. A criança experimenta, por exemplo, desenhar nas paredes ou no chão e se interessa pelo efeito de diferentes materiais e formas de manipulá-los, como pressionar o marcador com força e fazer pontinhos. Essa atitude de experimentação tem valor indiscutível na opinião de Rhoda: "Para ela 'ver é crer' e o desenho se desenvolve com base nas observações que a criança realiza sobre sua própria ação gráfica", ressalta Rosa Iavelberg, especialista em desenho e docente da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), no livro O Desenho Cultivado da Criança: Práticas e Formação de Educadores. Esse aprendizado durante a ação é frisado pela artista plástica e estudiosa Edith Derdyk: "O desenho se torna mais expressivo quando existe uma conjunção afinada entre mão, gesto e instrumento, de maneira que, ao desenhar, o pensamento se faz".
De início, a criança desenha pelo prazer de riscar
sobre o papel e pesquisa formas de ocupar a folha.
Com o tempo, a criança busca registrar as coisas do
mundo.
Uma das principais funções do desenho no desenvolvimento infantil é a possibilidade que oferece de representação da realidade. Trazer os objetos vistos no mundo para o papel é uma forma de lidar com os elementos do dia a dia. "Quando a criança veste uma roupa da mãe, admite-se que ela esteja procurando entender o papel da mulher", explica Maria Lúcia Batezat, especialista em Artes Visuais da Universidade Estadual de Santa Catarina (Udesc). "No desenho, ocorre a mesma coisa. A diferença é que ela não usa o corpo, mas a visualidade e a motricidade." Esse processo caracteriza o desenhar como um jogo simbólico (veja abaixo o comentário de Yolanda, 5 anos, sobre seu desenho).
"Esse aqui não é um coelho.
Não me diga que é um coelho porque é um boi bebê. Eu estou fazendo uma galinha
que foi botar ovo no mato. Quer dizer, uma menina que foi pegar plantas no mato
para dar ao marido." Yolanda, 5 anos
Muitos autores se debruçaram sobre as produções
gráficas infantis, analisando e organizando-as em fases ou momentos
conceituais. Embora trabalhem com concepções diferentes e tenham chegado a
classificações diversas, é possível estabelecer pontos em comum entre as
evolutivas que estabelecem. Pesquisadores como Georges-Henri Luquet
(1876-1965), Viktor Lowenfeld (1903-1960) e Florence de Mèridieu oferecem
elementos para a compreensão dos desenhos figurativos das crianças, destacando
algumas regularidades nas representações dos objetos.
Desenhar
é uma forma de a criança lidar com a realidade que a cerca, representando
situações que lhe interessam.
Mais cedo ou mais tarde, todos os pequenos se
interessam em registrar no papel algo que seja reconhecido pelos outros. No
começo, é comum observar o que se convencionou chamar de boneco girino, uma
primeira figura humana constituída por um círculo de onde sai um traço
representando o tronco, dois riscos para os braços e outros dois para as
pernas. Depois, essa figura incorpora cada vez mais detalhes, conforme a
criança refine seu esquema corporal e ganhe repertório imagético ao ver
desenhos de sua cultura e dos próprios colegas.
Uma das primeiras pesquisas dos pequenos, assim que
entram na figuração, é a relação topológica entre os objetos, como a
proximidade e a distância entre eles, a continuidade e a descontinuidade e
assim por diante. Em seguida, eles se interessam em registrar tudo o que sabem
sobre o modelo ao qual se referem no desenho, e é possível verificar o uso de
recursos como a transparência (o bebê visível dentro da barriga mãe, por
exemplo) e o rebatimento (a figura vista, ao mesmo tempo, por mais de um ponto
de vista). Assim, a criança se aproxima das noções iniciais de perspectiva e
escala, estruturando o desenho em uma cena, sem misturar na mesma produção
elementos de diferentes contextos (veja abaixo a produção de
Anita, 5 anos, que detém essas características).
"Vou desenhar a minha casa. Aqui é o portão e
tem uma janela aqui." Anita, 5 anos
"Dá para ver a sua mãe dentro de casa?" Repórter
"Não, porque a porta parece um espelho. Só daria se a janela estivesse aberta." Anita
"Dá para ver a sua mãe dentro de casa?" Repórter
"Não, porque a porta parece um espelho. Só daria se a janela estivesse aberta." Anita
O desenho é espontâneo ou é fruto da cultura?
Entre os principais estudiosos, há uma cizânia. Há os que defendem que o desenho é espontâneo e o contato com a cultura visual empobrece as produções, até que a criança se convence de que não sabe desenhar e para de fazê-lo. E há aqueles que depositam justamente no seu repertório visual o desenvolvimento do desenho. Nas discussões atuais, domina a segunda posição. "A única coisa que sabemos ser universal no desenho infantil é a garatuja. Todo o resto depende do contexto cultural", diz Rosa Lavelberg.
Detalhes
da figura humana, noções de perspectiva e realismo visual são elementos da
evolução do desenho.
Essa perspectiva não admite o empobrecimento do desenho infantil, mas entende que a criança reconhece a forma de representar graficamente sua cultura e deseja aprendê-la. Assim, cai por terra o mito de que ela se afasta dessa prática quando se alfabetiza. "O desenho é uma forma de linguagem que tem seus próprios códigos", diz Mirian Celeste Martins. "Para se aproximar do que ele expressa, é preciso fazer uma escuta atenta enquanto ele é produzido." Para Mirian, a relação entre a aquisição da escrita e a diminuição do desenho ocorre porque a escola dá pouco espaço a este quando a criança se alfabetiza - algo a ser repensado em defesa de nossos desenhistas.
* Os desenhos e os diálogos publicados nesta reportagem são de crianças de 3 a 5 anos da Creche Central da Universidade de São Paulo (USP)
BIBLIOGRAFIA
O Desenho Cultivado da Criança: Práticas e Formação de Educadores, Rosa Iavelberg, 112 págs., Ed. Zouk, tel. (51) 3024-7554, 23 reais
Tratado de Psicologia Experimental, vol. 8, Paul Fraisse e Jean Piaget, 313 págs., Ed. Forense, tel. (11) 4062-5152 (edição esgotada)
O Desenho Cultivado da Criança: Práticas e Formação de Educadores, Rosa Iavelberg, 112 págs., Ed. Zouk, tel. (51) 3024-7554, 23 reais
Tratado de Psicologia Experimental, vol. 8, Paul Fraisse e Jean Piaget, 313 págs., Ed. Forense, tel. (11) 4062-5152 (edição esgotada)
Fonte: revista Nova Escola